A falta de dados sobre esse cenário, inclusive, é um dos problemas. Para fazer esse levantamento, a reportagem do Startups entrou em contato com as 20 gestoras com mais ativos em valores aportados em 2023. A lista foi feita pela Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP). Foram solicitados dados como número total de empresas investidas, número de empresas investidas com fundadoras mulheres, valor total investido (AUM) e valor total investido em startups femininas. Apenas 10 dessas gestoras, a metade, enviaram as informações.
No total, essas gestoras investem em 901 startups. Apenas 176 têm fundadoras mulheres, o que equivale a 19,54%. Já o valor total investido é de R$ 1,49 bilhão, dos quais R$ 176,4 milhões foram para startups com mulheres entre os fundadores, o que corresponde a 11,83%.
“A gente precisa de dados, eles são muito importantes para medir a mudança. Para que a agenda seja mais eficaz e os planos de ação mais efetivos, precisa ser feito um mapeamento”, diz Cristina Penteado, conselheira da ABVCAP e diretora da Blue Orange Capital. Ela afirma que a ABVCAP está planejando uma iniciativa nesse sentido em parceria com agentes do mercado.
Na América Latina, a situação não é muito diferente. Os dados mais recentes da LAVCA (Association for Private Capital Investment in Latin America), referentes ao primeiro semestre de 2023, mostram que startups com lideranças femininas (CEOs e fundadores) corresponderam a 23% das rodadas de VC no período e receberam 18% do capital investido. A estatística inclui apenas startups que receberam aportes de mais de US$ 1 milhão.
Onde estão as fundadoras?
Mas por quê as mulheres recebem menos de 20% dos investimentos do venture capital? Um dos motivos está ligado ao fato de que há, simplesmente, menos fundadoras do que fundadores. Levantamento feito pela Associação Brasileira de Startups (Abstartups) no ano passado revelou que 19,7% das startups no Brasil são fundadas por mulheres.
“Eu raramente me deparo com empresas com fundadoras mulheres. E eu tenho um fundo de impacto, que busca ativamente essa agenda de diversidade de gênero. Mas a realidade é que a gente se depara com pouquíssimos negócios que têm mulheres como sócias, eu conto nos dedos. É uma frustração”, lamenta Cristina.
Para a conselheira da ABVCAP, a baixa proporção de fundadoras pode ter relação com a forma como a sociedade é estruturada, em que as mulheres ainda concentram os cuidados com a casa e com a família incluindo filhos, marido e pais e sogros idosos.
“Uma teoria é de que as mulheres são mais cautelosas, têm mais aversão a risco e uma insegurança de empreender. Mas existe também a questão da disponibilidade de empreender, que exige um desprendimento muito grande, que para os homens é mais fácil. Quando se tem filhos e atribuições, fica mais difícil para a mulher fazer esse juggling”, aponta.
Os desafios da captação
Outra questão são os vieses que estão presentes em um mercado que ainda é majoritariamente masculino. Uma publicação da Harvard Business Review revela que os investidores preferem pitchs feitos por homens do que por mulheres, mesmo quando o conteúdo das apresentações é o mesmo. Na hora da negociação, as perguntas feitas para os empresários em busca de capital costumam girar em torno das vantagens e ganhos potenciais do negócio, enquanto as empreendedoras recebem uma abordagem mais preventiva, com foco nas perdas potenciais e na mitigação de riscos.
“Nas captações Gupy, todos os investidores com quem conversamos eram masculinos. Recebi várias perguntas preconceituosas sobre qual era o papel do meu marido nessa relação, o que eu faria quando engravidasse e o impacto disso nos negócios. Inclusive, um dos fundos chegou a direcionar mais perguntas para o CFO do que para mim, que sou CEO. Tudo isso gera uma fricção mental e aumenta a insegurança e a síndrome da impostora das mulheres”, afirma Mariana Dias, CEO e cofundadora da HRTech Gupy, em conversa com o Startups.
A experiência da CEO da Gupy não é um caso isolado. Mais de 60% das fundadoras no Brasil já foram questionadas por investidores se “teriam condições” de tocar o negócio, 45,7% se “conheciam termos técnicos básicos” e 14,2% se sua empresa “tem um homem no quadro societário”, revela o estudo Female Founders Report, elaborado pelo Distrito, a Endeavor e a B2Mamy. Além disso, 72,4% das empreendedoras que passaram pelo processo de captação afirmaram terem sofrido assédio moral, principalmente relacionado a questões de gênero e maternidade.
Segundo a pesquisa, algumas razões para a disparidade de investimentos são a desigualdade de gênero no ecossistema de VC e a alocação desigual de capital entre empresas lideradas por homens e mulheres. O momento mais difícil da captação, de acordo com 41,1% das founders mapeadas, é o 1º contato com o investidor, seguido pela hora do pitch (36,2%) e o due diligence, processo de análise de informações sobre a empresa e a oportunidade do negócio (19,7%).
“Mulheres investidoras ainda são poucas, e trazer mais diversidade para a mesa de negociação ajuda. Sinto que os fundos até têm a intenção, mas têm uma dificuldade sobre como fazer. Eles querem, mas se questionam onde estão essas mulheres – e elas estão aí! Tem um monte de negócios e mulheres incríveis. É importante que haja mais diversidade dentro dos fundos, mas também no ecossistema de forma geral, criando cada vez mais iniciativas para quem está no início da jornada para impulsionarmos essas mulheres a crescerem seus negócios”, destaca Mariana.
A publicação da Harvard destaca também que há uma diferença significativa na forma como as mulheres se apresentam para os investidores, o que também pode intensificar a disparidade no fluxo de capital. “As mulheres tendem a subvalorizar-se em comparação aos homens em situações competitivas e, consequentemente, parecem ser “menos seguras de si” para potenciais investidores. Essa disparidade ainda é debatida, e é discutível se seria uma verdadeira desvantagem. Na medida em que inibe o excesso de confiança, pode na verdade ser uma força mal compreendida”, diz o texto.
Como furar a bolha
CEO e fundadora da fintech Noh, Ana Zucato foi uma das mulheres que conseguiram furar a bolha do venture capital ao captar a maior rodada de seed (R$ 17 milhões) entre as fintechs lideradas por uma mulher na América Latina. Mesmo assim, o caminho não foi fácil. “Já vi, por exemplo, o mesmo investidor me pedir 150 demonstrativos financeiros, e não pedir nada para um homem. Me sinto constantemente desafiada a me explicar e provar que entendo do que eu estou falando”, conta.
Os desafios são tantos que Ana acabou encontrando formas de driblar os vieses. “Já aconteceu de eu chamar o meu sócio e pedir para ele fazer o pitch no meu lugar. Foi a forma que eu encontrei de tentar tirar a aparência da equação. Somos constantemente julgadas, pelo tamanho da nossa saia, pela nossa unha, e no trabalho não seria diferente”, diz.
Com o tempo, a empreendedora começou a trabalhar a confiança, desenvolvendo métodos como elaborar respostas de antemão para todas as perguntas que poderiam ser feitas pelos investidores no pitch. Para Cristina Penteado, esse tipo de preparação é fundamental para o sucesso das mulheres em um pitch contra fundadores homens.
“Ainda existe um bias. Não é nem consciente ou intencional. Mas é natural, faz parte da zona de conforto buscar uma identificação. E os investidores homens vão se identificar mais com outros homens. Não é um tratamento igual, com certeza, mas é importante que as mulheres aprendam a escutar o que o investidor quer e lembrem que o investidor vai ouvir 200 pitchs para escolher um. Nem sempre será uma questão de gênero”, afirma.
A conselheira da ABVCAP ressalta que muitas vezes as startups fundadas por mulheres acabam focando em soluções para o universo feminino ou de grupos específicos, o que reduz a chance de financiamento. “Esse tipo de negócio reduz a interlocução. A fundadora tem que entender quem é o bolso que está buscando esse investimento. Isso às vezes exige que a startup se adeque a uma tese que tem capital disponível”, explica.
Mas e se a bolha fosse feminina?
É pensando justamente nessa necessidade de ensinar outras mulheres a alcançar esses espaços no ecossistema de startups que empreendedoras e investidoras têm criado iniciativas como o Female Force, que visa facilitar a jornada feminina no setor e potencializar o seu desenvolvimento. Bianca Martinelli, sócia da Alexia Ventures, faz parte desse projeto e acredita que a diversidade nos fundos também é importante. Para ela, mulheres tendem a investir mais em outras mulheres.
“Precisa ter um trabalho de base inclusive para que as mulheres possam ter mais acesso tanto a fundos, quanto também a qual é o ritual que se passa nesse processo de captação. Além disso, é preciso ter mais mulheres dentro do mundo de VC que possam compreender esses vieses e possam trazer para a mesa um pouco desses pontos de vista”, aponta.
O poder da rede
Em janeiro de 2022, a Gupy levantou uma rodada de R$ 500 milhões com investidores de peso como SoftBank, Riverwood, Endeavor Catalyst, Oria Capital e Maya Capital. O aporte foi não só o maior na história da companhia, mas também o maior para uma startup criada por mulheres na América Latina até então. Embora ela notasse uma maior participação feminina principalmente nos fundos early-stage, no late-stage o perfil dos investidores ainda era predominantemente masculino.
“Quando anunciamos a captação, eu e a Bruna Guimarães (cofounder e COO da Gupy) recebemos uma chuva de mensagens de empreendedoras querendo se conectar. O que eu menos queria era passar a sensação de sermos heroínas, de que captar era fácil e que tudo estava dando certo”, conta Mariana. A solução foi, alguns dias depois, organizar um café da manhã em sua casa para que empreendedoras trocassem aprendizados e experiências reais com captação.
O sucesso foi tão grande que o encontro se tornou algo periódico. Batizado de Máfia do Moscatel, hoje o grupo reúne mais de 70 empreendedoras. “O grande objetivo é que elas saibam que ainda somos poucas, mas que não estamos sozinhas, e construir um ambiente de segurança onde a gente possa mostrar as nossas vulnerabilidades e uma ajudar a outra. Então houve sim avanços no ecossistema feminino, mas que eles precisam continuar, com mais iniciativas intencionais, porque ainda existe muita discrepância”, pontua a CEO.
Mariane Takahashi, CEO da Abstartups, afirma que redes de contatos e espaços de networking exclusivos para mulheres podem facilitar a criação de parcerias e oportunidades de negócios. “As mulheres, geralmente têm redes de contatos menores em comparação com seus colegas masculinos, o que pode dificultar o acesso a investidores e mentores influentes”, explica.
Segundo Mariane, outro problema é que, mesmo quando as mulheres têm essa rede de contatos, os investidores tendem a favorecer empreendedores do sexo masculino. Assim como foi relatado por Mariana e Ana, ela conta que as mulheres podem ser subestimadas ou não levadas a sério durante as apresentações de seus projetos para potenciais investidores.
“Isso se intensifica ainda mais com estereótipos de gênero que levam os investidores a questionar a capacidade das mulheres de liderar e crescer uma startup de sucesso. É aí que temos que ouvir perguntas ou críticas sobre o equilíbrio entre trabalho e família, ou sobre a capacidade das mulheres de tomar decisões difíceis no mundo dos negócios”, diz.
Daí a importância de haver redes de mulheres que possam não só inspirar outras fundadoras, como mostrar o caminho das pedras e oferecer contrapontos durante as tomadas de decisão. Cristina, da ABVCAP, acredita que existe muito mais contribuição do que competição entre as mulheres nesse ecossistema.
“Quando eu entrei nesse mercado, há 20 anos atrás, eram duas ou três mulheres, então era meio que cada uma por si, a gente tinha que sobreviver. Hoje existe um senso de parceria e responsabilidade que predomina sobre a rivalidade. As mulheres têm se ajudado, seja através de mentorias ou rede de apoio”, comemora.